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Didgeridoo

 

 

 

Um dos primeiros presentes que ganhei durante a infância foi um atlas. Queria, como dizia ao meu pai, era um livro que tivesse “todas as bandeiras do mundo”. Sentia necessidade de ver as Olimpíadas na televisão e saber distinguir o Nepal da Nigéria. Presente recebido; ao final, tinha um livro com capa preta e em letras roxas a palavra “Atlas” estampada em sua capa.

Mais velho, a relação com as imagens e textos ganhou outro contorno onde sumiram as folhas de papel e entrou em cena uma superfície circular e brilhante: o CD-ROM. Lembro bem de abrir através dele não mais um atlas, mas a agora chamada Microsoft Encarta. Era uma enciclopédia que tinha mais de cinquenta mil verbetes e que, num momento ainda sem internet na vastidão do Brasil, parecia mágica. Com um sistema de busca, rapidamente qualquer coisa parecia acessível e com imagens para serem retrabalhadas e ilustrar meus trabalhos de escola.

Dentro desse universo havia também áreas especiais e uma deles era sobre instrumentos musicais. Ficava embasbacado em como cada área geográfica, segundo a visão proporcionada pela Microsoft, possuía um objeto típico que, claro, fazia sons destoantes. Um deles habitou por muito tempo minha imaginação e parecia o mais exótico dos exóticos – vinha da Austrália (o tal novíssimo mundo) e tinha um nome igualmente distante: didgeridoo. Parecia um berrante, mas o som era mais fragmentado; os protagonistas aqui eram essas populações que também traziam uma nova palavra pro meu vocabulário, os “aborígenes”.

Os novos trabalhos de Renata Cruz apresentados na exposição “Proposta para a atualização de uma enciclopédia” trazem, como seu título denuncia, essa lembrança do conhecer o mundo através da paginação, da imagem e do texto. A partir de seu encontro com um livro chamado “O mundo em que vivemos”, a artista se pergunta: por que não tomar esse mesmo título e refletir sobre aquilo que nos rodeia e nos invade diariamente? No lugar da biologia e das digressões sobre a evolução, a botânica e a zoologia, tal qual contidas nessa enciclopédia e que visavam servir de instrumento do conhecimento do mundo para jovens, Renata percebe e transforma em imagens situações, relações de poder, paisagens e resquícios da natureza verde ainda presentes em São Paulo.

As palavras que dividiam a enciclopédia se transformam em estopins poéticos para a criação de novas imagens através da aquarela. Se na publicação original as imagens coloridas eram vistas como tesouros por fazer com que coisas distantes da fotografia pudessem ser vistas, o olhar da artista realiza um movimento historicamente inverso por vivermos nesse período de profusão ininterrupta de imagens e onde as distâncias geográficas parecem banais pelas infinitas possibilidades do compartilhamento virtual. O caráter precioso, de todo modo, segue aqui: a fotografia de um autor desconhecido tirada pelo celular que estampa a capa de um jornal pode se transformar em trabalho artesanal que, na era dos cliques, é retomado por aquela aura comentada por Walter Benjamin.

Mais uma vez, então, assim como nas enciclopédias dos anos 80, aí está o lugar essencial da escrita. Em vez de pensarmos numa relação em que o texto estaria subjugado à imagem, me parece melhor tratarmos de uma relação dialética entre ambos; falemos em imagemtexto. Em sua ansiedade didática, as imagens não podem flutuar pelas páginas do papel. Não há lugar também para as notas de rodapé chatíssimas dos livros acadêmicos com sobrenomes antes de nomes, idem e op. cit. Não se pode ter dúvida e o melhor modo de ausentar o leitor desse lugar é colocando a boa e velha legenda abaixo de cada imagem. A artista, em sua camuflagem da tradição enciclopédica, também segue esse formato e para não deixar o público em dúvida de que toda publicação científica não deixa de ser uma grande ficção, convida Jorge Luís Borges para essa conversa.

O autor argentino costumava associar leitura e alegria. Posso dizer, então, que os trabalhos recentes de Renata Cruz me levaram a essa memória do primeiro contato que tive com a leitura e com a ansiedade de ler as imagens. Voltei ao meu didgeridoo, abri minhas abas do Youtube e lembrei a sensação de ouvir aquele estranho som ainda dotado de uma carga primitivista forte. De repente, pela primeira vez em quinze anos, veio a dúvida: por que se chama “didgeridoo”?

Google pra lá, google pra cá, para minha surpresa descubro que o seu nome apareceu pela primeira vez em 1919, num jornal australiano. Em outras palavras, nenhum “povo aborígene” chamava o instrumento desse modo; trata-se de uma recodificação anglo-saxônica. Depois da nova aquisição de conhecimento, respiro e olho uma segunda vez para a tela do computador. Em qual página estava? Claro, na Wikipédia.

E assim entendo melhor o trabalho de Renata Cruz: esse ainda é o “mundo em que vivemos”. Longe das páginas amareladas das enciclopédias, estamos à frente do branco de fundo dos verbetes virtuais. A cadeia alimentar da natureza selvagem é diariamente transformada nas hierarquias e burocracias da vida contemporânea. A existência segue regida por esses livros da sabedoria.

O “ensino circular” da etimologia grega da palavra “enciclopédia” continua cheio de abismos, fluxos e ofegos, assim como aquele que prática com seu didgeridoo.

 

 

 

Raphael Fonseca

 

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