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Sistemas de Trocas – imagens e objetos simbólicos [de Renata Cruz]

 

 

 

"Dall'immagine alla voce la via può essere breve, se i sensi rispondono. La rètina comunica col timpano e "parla" all'orecchio di chi guarda; e per chi scrive la parola scrita è sonora: prima la sente nella testa." Antonio Tabucchi, "Racconti con figure".

 

“I drank the silence of God From a spring in the woods.” Georg Trakl

 

 

Trocas simbólicas, Pierre Bourdieu dixit, demonstram as idiossincrasias de uma sociedade, assim sendo denunciando um espaço e um tempo configurado por padrões e cânones éticos, económicos, políticos e culturais – advindos de todas as demais congruências de atuação e pensamento que a epistemologia nos ensinou, por conta dos modelos e preconceitos (gnose)lógicos ocidentais. O Sistema de Trocas proposto por Renata Cruz, ocupa‐se de situações potencializadas com escopo estético, artístico em campos de ação e intervenção nas comunidades, grupos e pessoas que a instituem enquanto tal. Os episódios isolados que integram este projeto, até agora, sempre em aberto, pode nalguns casos possuir uma incidência maioritariamente pedagógica, sociológica ou artística (como objetivo ou para atribuir competência) mas compartilha sempre uma poética incontornável. O processo glosa a esquematização do que se entende ser a “comunicação”: existe um emissor, uma recetor e uma mensagem. Neste caso a mensagem é uma transação e, simultaneamente, um objeto matérico, tanto quanto simbólico. Assim: o emissor é toda e qualquer pessoa que entrega um objeto que é por si mesma escolhido, tendo como consciência que o vai oferecer/dar à artista; o recetor +e a artista que recolhe e aceita a oferta desse objeto. A norma estabelecida e cumprida impõe que a artista oferece/dê à pessoa com quem interage um “caderno de desenhos” seu, tendo este momento/ ato a 1ª definição conclusiva do processo. Toda esta designação atuante decorre num espaço em que ambas as pessoas estão presentes ou pode ser mediado por uma via de correspondência, prioritariamente por email. Nesse caso, o emissor envia para a artista, um attch que consiste na fotografia do objeto escolhido e, posteriormente, entregar‐lhe‐á esse mesmo objeto (na sua integridade física). Situações excecionais dizem‐nos que a troca pode fechar‐se – em concordância mútua – na imagem do objeto, atendendo a circunstâncias que assim se consignam como as mais convenientes e/ou adequadas. Mas, a simbologia do projeto ab initio, mantém‐se incorrupta. Numa fase sequente, Renata Cruz desenhará os objetos recolhidos (que lhe foram entregues) estruturando séries que num destino expositivo sejam apresentadas em contexto diraístico/documental – situando‐se numa poética instaurada por seus princípios – antropológicos, quanto societários e portanto identitários. Dão origem a séries que se pautam por uma indexação temporal, espacial ou poiética, traduzida em titulações e terminologias adstrita a catalogações singulares e que lhe são intrínsecas embora dirigidas a todos aqueles que as possam recolher/rececionar – mediante a perceção estética em aberto: “Cada um de nós é uma sociedade inteira.”

1 A metodologia de trabalho direciona a produção artística de Renata Cruz, associando‐ se a uma consciência intrínseca do poético e plasmando uma vocação intimista extrema. Não muito frequente se associam em tanta harmonização e consentaneidade as exigências do procedimento, o impulso continuado e a persistência das dinâmicas substantivas – demonstrativas da identidade do autor. Os desenhos estão em quietude, nesse silêncio da descontaminação, dentro de um espaço que os recebe e manifesta – em simultâneo. Alguns encontram‐se num diálogo, decorrente das possíveis associações a objetos estrangeiros, igualmente presentes na mostra. 3 conceitos, entre tantos outros que se podem assinalar, atravessam e sustentam as obras apresentadas na 1ª exposição individual da artista brasileira Renata Cruz – Sistema de trocas – imagens e objetos simbólicos, em Portugal. São eles: memória, silêncio e viagem (talvez não por esta ordem mas vamos ver…). Todos são partilhados e coincidem nos meandros de cada pessoa sendo, exatamente, a razão e sentimento nítidos de suas diferenças irreversíveis e identificadoras. Os trabalhos organizam‐se, esparsos e (talvez suspiradamente sozinhos) nas paredes da Sala da Galeria, pese embora também pontuem locais inesperadas, como que conduzindo o visitante para uma caminhada de descoberta, onde cada detalhe ou pormenor, nunca é descuidado ou fortuito. A exposição pode ser abordada como se de uma cartografia diarística se tratara, compilando dias, dias, dias – lembrando‐me o poema visual de Augusto de Campos, pois, à sua semelhança, cada um poderá iniciar a leitura (entenda-se) a sua visita por onde decida. É, portanto um percurso em aberto, evocativo da situação de abertura e processo que nos falou Umberto Eco. A polissemia é transfigurativa e seduz, propiciando uma fruição estética que, para alguns, atingirá estádios de deleite e quase alienação. Por analogia ao que a artista vem empreendendo no projeto de parceria CruzCappeletti, somos induzidos para a vivência de um “estado de desenho”. No caso, o que o visitante disponível saberá usufruir, situa‐se numa plataforma de consciência identitária que o faz fluir numa levitação estética que, em paralelo, se articula com a conceitualização husserliana de “suspensão” (époche). O estado de desenho será, numa certa aceção, um estado de suspensão. E esse estado de desenho poderá ser percecionado pela via (da analogia empática), pela consonância de alguns estrangeiros/ exteriores ao processo privado, quando da sua contemplação/experienciação psico‐sócio‐visual dos desenhos presentificados. O espectador depara‐se, assim – em genuína propriedade – com o “eu e suas circunstâncias”, numa efetividade que celebra o pensamento de Ortega y Gassett. Quer se pense no que seja a condicionalidade identitária da autora, quer se anuncie a pluralidade inquantificável de todos aqueles que visitem a exposição. Entre a identidade pessoal e a razão de alteridade que a consolida e expande, situam‐se elementos visuais que são espaços de intermediação, onde se parece haja isenção de tempo, a planificação de olhares hieráticos é motor ou impulso para dinamismos internos que se projetam e introjetam, de forma incessante. Memória “Já sobre a cabeça não há cúpulas, mas algures Num surdo subúrbio a casa solitária, Onde faz frio no Inverno e no verão calor, Onde há uma aranha e a poeira em tudo pousa, Onde se decompõem cartas ardentes, Onde pela calada mudam os retratos, (…) Mas o relógio faz tiquetaque, uma primavera substitui A outra, o céu vai ficando róseo, Mudam-se os nomes de cidades, E não há já testemunhas dos acontecimentos, E não há com quem chorar, não há com quem recordar. (…)” 2

As sucessivas entradas de pequenos momentos vividos, em estatuto de acumulo, configuram uma personalidade em movimento que, todavia, persiste nos tópicos singulares que lhe auferem a distinção e causa única. Refiro‐me à decifração de instantes – que nunca estão sozinhos porque não sabem onde se iniciam ou finalizam. Santo Agostinho soube determinar essas marcas indiciadoras de que existem – em plenitude – zonas de sobreposicionalidade, de intersecção e onde as fronteiras perigosa e belamente tendem a dissipar‐se. Tudo, se direciona e reside nas caixas da memória individuada que aglutina as extensões do societário e do coletivo – que se sabe possuir consequências e ascendentes arquetípicos – Jung dixit... As gavetas onde se guardam lembranças no nosso pensamento mais claro, tanto quanto no mais obscuro, reflectem sobre as indiferenciações casuais e episódicas em que os reino do imaginário socializam com as sistematizações do (suposto) real e/ou fatual. Por outro lado, talvez que a memória seja – de algum modo e em certa percentualidade – uma caixa de Pandora apropriada a gostos e necessidades múltiplas. As efabulações da memória – que aliás se sabe não ser (de todo) uma causa singular – projetam‐se e materializam‐se, correspondendo a auspícios e solicitações de diferente origem e matéria. “120 A memória é essa claridade fictícia das sobreposições que se anulam. O significado é essa espécie de mapa das intervenções que se cruzam como cicatrizes de sucessivas pancadas. Os nossos sentimentos. A intensidade do sentir é intolerável. Do sentir ao sentido do sentido ao significado: o que resta é impacto que substitui impacto – eis a invenção.”3

A memória individual escolhe os seus alvos, seleciona os dados imagéticos, as sensações, enfim… tudo aquilo que lhe é mais necessário tornar imediato nas razões da evocação mas reserva‐se a possibilidade de acionar quando prioritário elementos decorrentes de vivências anteriores supostamente olvidadas e bloqueadas. Todas as pequenas lembranças integradas exalam um perfume de “madalena” e xícara de chá à la Marcel Proust e, de fato, essa carga intensa, atualiza‐se em objetos simbólicos que pertencendo, de certa forma à memória do diurno/consciente transportam toda uma infindável incondicionalidade associativa do noturno/inconsciente lavrado em obra conceitualizada, por parte da Renata Cruz. Múltiplos estádios e tipologias subjazem à afirmativade da memória, que seja arquivo, lembrança e recordação ativados consoante os estímulos e as decisões. Silêncio “…Cada coisa está isolada ante os meus sentidos, que a aceita impassível: um ciclo de silêncio. Cada coisa na escuridão posso sabê-la, como sei que o meu sangue circula nas veias.”4 O silêncio é uma condição imprescindível para o desenrolar do processo de desenho que Renata Cruz desenvolve. A duração está implícita na anunciação desse ato,   comprovando que a fala de Goethe no Fausto é ainda e sempre da maior acuidade e pertinência, quando associada à assunção de pensamento e para a criação da obra. Cada obra é parte constitutiva de um todo que engloba o processo, quanto os produtos finalizados e estado de disponibilização (quase ousaria dizer dádiva) aos demais. Talvez que, nesse entendimento em relação de alteridade, o primado de silêncio impere – em termos de receção estética e se institua como a categoria privilegiada. “O que é o espaço senão o intervalo por onde o pensamento desliza imaginando imagens? O biombo ritual da invenção oculta o espaço intermédio o interstício onde a percepção se refracta Pelas imagens entramos em diálogo com o indizível”5 A vertigem que o silencia supõe é uma espécie de mergulho em luz. O silencia também é essa luz que inunda um espaço e dissolve as existências, cativando‐as num estado de aposentação de sentidos preconceituados e, assim, as transporta para uma assunção simbólica mais plena. Diga‐se que é imprescindível essa aceitação do vazio, da luz que desconfigura a racionalidade e o visível para se aceder à evidência. Por evidência entendo a conformação das coisas a ver mas que são possuídas pelo âmago da sua substância. Momentos aristotélicos de conciliação que ultrapassam as formatações matéricas simples e adquirem uma razoabilidade lúcida de pactos intimistas e comunitários. O silêncio viabiliza, pois dele surge o destaque daquela existência sonora que não está mergulhada no nosso quotidiano – por isso não ouvimos a “música das esferas” que os pitagóricos nos atribuíram em herança cosmogónica. À semelhança desta argumentação, veja‐se que os objetos desenhados – fruto de relacionalidades afetivas ou de encontros fortuitos e deliberados com as pessoas que integram um público (que nunca é abstrato), adquirem uma carga (cumulativa) a partir do momento em que emergem do silêncio que seja o desconhecimento do outro. O outro, os outros, mediante o ato de apresentação do objeto escolhido, presentifica(m)‐se como pessoa, saindo do silêncio societário. Viagem Talvez que, como afirmou Michel Mafesolli em Sobre o Nomadismo, seja necessário por vezes, desligar‐se para melhor saborear a proximidade das coisas. Assim, se poderá igualmente admitir que a pessoa que entrega o seu objeto (simbólico, de afeto ou ódio) a Renata Cruz, melhor dele se alimentará pois que, num primeiro o designa, o apresenta e, portanto, o celebra, dele se ausentando definitivamente. Então, esse objeto para quem o possuiu passa a ser a imagem mental que internalizou (tendo‐a elaborado como mental e não mais somente como visual) e, por outro lado, poderá, um dia, acontecer que o veja como imagem dentro de um desenho do artista. Eis, pois a viagem efetiva do objeto, a sua deslocação intrínseca e extrínseca, em paralelo. A questão da viagem aglutina a memória e o silêncio, sabe‐se: “…o silêncio eterno desses espaços infinitos apavora‐me”, escreveu Blaise Pascal. A viagem é denotativa da ideia de infinito que se pensa delimitar e circunscrever num tmpo e espaço. Embora, na realidade a viagem seja algo expansível e, muito frequente, se é incapaz de fechar, de concluir. Ao conceito de viagem associa‐se habitualmente a paisagem e o retrato de alguém nessa paisagem. Como assinalou Bernardo de Carvalho em Mongólia, na realidade nunca se estará à procura da paisagem mas antes de alguém na paisagem. Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia, como de estação para estação, no comboio do meu corpo, ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças, sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes, como afinal as paisagens são.6 Quando o heterónimo de Fernando Pessoa afirmava que somente quem fosse fraco de imaginação precisava de se deslocar para viajar, sustentava uma convição pregante que facilmente se entende e não é impedimento da pretensão quanto a se mover. Envolve uma sabedoria quanto ao que seja a perceção do corpo próprio no espaço e no tempo; a razão do seu contorno e peso ontológico quanto antropológico e a afetação de variantes psicossociais distintivas.

A viagem na cabeça, quanto através do corpo efetivo a deslocar‐se nos espaços que perceciona e antecipa, para depois afirmar (ou assegurar), não é somente caso de paisagem e retrato mas muito destacadamente de objetos. A mobilidade, a passagem dos objetos – em termos do que se consignaria em “mito de posse” será mais para afirmar no plural e apreender como situação transacional. O sistema de trocas é de ordem do transacional, elaborando certas fantasmasias e proporcionando extrapolações íntimas materializadas. A associação que a artista desenvolve, de modo recorrente, com a escrita e atendendo ao desenho em sua composição, propõe uma polissemia (como se vem anunciando) dirigida. O que significa que ao escrever, a artista configura‐se numa caligrafia precária (em aparência de recuperada inocência, bem ao jeito romântico e modernista da recuperação da inocência e genuinidade – Schiller até Miro ou Almada Negreiros). Essa caligrafia leve e quase inconsequente, carrega uma intencionalidade que recupera excertos de textos, frases de poemas ou ensaios diversificados, cuja autoria direta é anulada. O autor de quem proceda essa frase ou frases não é indicado. As referências literárias dos autores que Renata Cruz privilegia – Jorge Luís Borges, Ian McEawn ou Coetze…, entre tantos outros, alimentam‐se – pois adquirem novas aceções semânticas transfiguradas e sozinhas – quando escolhidos e apropriados pela artista que promove a conversão (e posse) dos referidos autores em outros pensamentos paritários e compartilhados. Essas frases, fragmentos, procedendo de outrem, convertem‐se em desígnios impositivos de sua autoridade psico‐afetiva pois foram mastigados e saboreados por si mesma. Os objetos deslocados e que viajam (algo nómadas…) que sedentarizam na compulsividade do desenho ocupam‐se de si mesmos e afastam‐se das identidades, tornam‐se independentes portanto. No ato de desenhar converge uma ação de autonomia do objeto desenhado por relação ao sujeito que os destinava. Na posse transposicionada de Renata Cruz, os objetos (isolados e em parceria) comungam da eventualidade de uma asserção identitária que é retentiva mas também – em certa aceção – de neutralidade. Pois, os tantos e inúmeros sujeitos que os possam contemplar serão incapazes de os paralisar ou cercear fronteiras.

 

1 Bernardo Soares, “Estética da Indiferença”, Livro do Desassossego, p.95 

2 Anna Akhmatova, “Elegias do Norte - Quarta”Poemas, Lisboa, Relógio d’Água, 2003, pp.82-83

3 Ana Hatherly, 351 tisanas, Lisboa, Quimera, 1997, p.62

4 Cesare Pavese – “Mania da solidão”, Trabalhar cansa, Lisboa, Ed. Cotovia, 1997, pp. 71-73

5 Ana Hatherly, “O que é o espaço?”, O Pavão Negro, p.37

6 Bernardo Soares, Op.cit., p.409

Maria de Fátima Lambert S.Paulo/Porto, outubro 2013 Texto maria de fatima

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